quinta-feira, 23 de maio de 2013

Guerra Fria

A paisagem era linda: uma floresta de pinheiros na encosta de uma colina. O rumor do rio, que corria num leito de pedras no fundo do vale, era o único som que se podia ouvir enquanto o crepúsculo tingia o mundo de vermelho. Nada disso, entretanto, importava a Dmitri. Sua respiração estava ofegante, o suor e a expressão de dor em seu rosto denunciavam mais sua idade do que os cabelos brancos em suas têmporas. Mesmo assim, ele não parava de correr. Continuar significava a diferença entre a vida e a morte. Ele corria sem parar, sem olhar para trás, mas seu fôlego de homem velho não agüentaria por muito mais tempo. Era preciso encontrar um esconderijo antes que anoitecesse, ou ele não teria chance.


Paradoxalmente, enquanto tentava se concentrar na tarefa primária de sobreviver, a mente de Dmitri divagava e o levava numa viagem pelo passado. Sua memória parecia zombar dele, fazendo-o lembrar-se de tempos há muito afundados no oceano do esquecimento. Uma época em que não existia a parafernália tecnológica com que seus inimigos agora o perseguiam e onde a inteligência, a astúcia, o treinamento e a disciplina eram as armas fundamentais de um espião. Os equipamentos fantasiosos e os carros esportivos fizeram a fama de James Bond, mas os verdadeiros agentes secretos não viviam naquele mundo de ilusão do cinema. Dmitri Czonakos fora o melhor agente da Cortina de Ferro ou, ao menos, um dos únicos que nunca foi apanhado. Inúmeras vezes realizara missões bem sucedidas sob os narizes dos americanos. Nunca fora descoberto.

Agora, no entanto, sua situação beirava o desespero. Os garotos que o encurralavam pela floresta tinham tudo o que a moderna tecnologia podia dispor de mais eficiente para uma caçada humana: rastreadores GPS, óculos de visão noturna, detectores de calor e muitas outras bugigangas que ele nem sequer sabia que existiam. Eles não tinham nem um décimo de sua experiência, não sobreviveriam um minuto sem seus brinquedos, mas não precisavam disso, seus métodos eram diferentes e ele estava em desvantagem. Dmitri sabia que sua astúcia não o manteria vivo por muito tempo, afinal eles estavam em maior número, eram mais jovens e estavam equipados até os dentes. No âmago de sua consciência ele sentia que o momento derradeiro estava próximo, mas isso não o dissuadia. Jamais desistiria. Nunca deixaria de lutar. Mesmo tendo convivido toda sua vida com mentira e traição, ele tinha seu próprio código moral, sua versão distorcida e particular do código do guerreiro. Por isso levaria seus segredos e, se possível, seus perseguidores, para o túmulo.

Os pensamentos e lembranças se dissiparam no momento em que avistou um casebre abandonado. Buscando abrigo e descanso, arrombou com um chute a porta de madeira apodrecida. Ao entrar, descobriu rapidamente que o lugar não estava tão abandonado quanto parecia. Havia restos de comida e bebida sobre uma velha mesa e algumas trocas de roupa penduradas num cabide improvisado com arame. Alguém estivera ali há pouco tempo, ou talvez ainda estivesse. Seus olhos percorreram o ambiente e logo avistou alguns caixotes de madeira empilhados num canto escuro. Em seu interior Dmitri descobriu explosivos suficientes para arrasar um quarteirão. Na certa aquele era um refúgio de mineradores, um lugar onde guardavam suas ferramentas e faziam suas refeições.

Cinco minutos era todo o tempo de que dispunha, talvez menos. Teria que bastar. Se quiserem arrancar a informação antes de me matar terão que entrar aqui, pensou ele enquanto preparava aquela que deveria ser a última armadilha de sua vida. Sua mente agora estava serena. Morreria, é verdade, mas levaria seus segredos e seus perseguidores junto.

Assim que terminou sua obra-prima da pirotecnia, os passos apressados já podiam ser ouvidos se aproximando do casebre. Seu coração disparou e ele, que sempre fora frio e inabalável, soube que a caçada tinha chegado ao fim. Dentro daquele lugar ele estava cercado, preso numa maldita ratoeira explosiva.

Dmitri se sentou numa velha cadeira de madeira, de frente para a porta e apenas aguardou que os garotos invadissem o lugar para pegá-lo. Eles não atirariam, porque ele só tinha valor se estivesse vivo e pudesse falar. Ao baixar a vista, percebeu que havia um alçapão muito bem disfarçado entre as velhas tábuas do assoalho. É claro, a mineração era proibida naquela região, nada mais lógico do que haver um esconderijo mais seguro e eficiente sob aquela choupana. Seu olhar se iluminou e um pensamento o fez sorrir com a expressão de quem vê a chama da vitória novamente acesa. Antes de descer pelo alçapão, pegou uma velha caneta esferográfica no bolso e um pedaço de papel de uma caderneta surrada onde fazia suas anotações.

O local foi cercado e dois jovens agentes americanos aproximaram-se cautelosamente da porta entreaberta do casebre abandonado, enquanto o restante da equipe dava cobertura. As tábuas corroídas pelos cupins rangiam sob seus pés reclamando do peso. Num movimento coordenado invadiram a velha choupana empunhando suas armas. Não havia nada, nenhum sinal do fugitivo. Vasculharam o banheiro e um pequeno quarto nos fundos, mas não encontraram ninguém.

Entreolharam-se buscando um no outro uma resposta que nenhum dos dois tinha: onde estaria ele? Nesse momento um dos agentes detectou um ruído metálico intermitente: tic, tac, tic, tac.  Sobre um caixote de madeira, num canto, havia um velho relógio despertador, daqueles que se dá corda para funcionar e que têm uma campainha estridente na parte de cima. Um dos agentes se aproximou com cuidado e pegou um pedaço de papel que estava preso ao relógio. Só havia duas palavras escritas em letras grandes de fôrma: GAME OVER. Ao se darem conta do que aconteceria já era tarde demais. Uma enorme explosão transformou a noite em dia por um segundo e o casebre dos mineradores se transformou num amontoado de destroços fumegantes.

Há uns cem metros dalí, uma pequena gruta, com uma abertura estreita esculpida na rocha, se revelava a saída de um túnel de fuga que partia do esconderijo sob o casebre de mineradores. Um par de velhos olhos astutos examinou o novo ambiente e decidiu que era seguro sair. As pernas estavam trêmulas de cansaço e o fôlego ainda era curto, mas um sorriso discreto foi iluminado pelo clarão do incêndio que se espalhava pela velha floresta de pinheiros e, embriagado pelo próprio triunfo, ele falou com uma voz rouca e um sotaque inconfundível:


- Deviam respeitar os mais velhos...

Nenhum comentário:

Postar um comentário