quarta-feira, 8 de maio de 2013

Sozinho


A claridade que invadia o quarto pelas frestas da veneziana atingiu os olhos de Adão e, naquele momento, ele soube que seu despertador havia mais uma vez falhado de forma inexplicável. Passava das oito horas e este seria seu segundo atraso na semana.

Por ser funcionário público, tinha alguma flexibilidade de horário, o mais difícil era suportar as cobranças de seu chefe, um velho rabugento que parecia odiá-lo pelo simples fato de existir. O Sr. Emanuel era um homem alto, corpulento, de pele muito clara e cabelos prateados. Seu rosto era vermelho e tinha sempre a mesma expressão de desprezo por tudo e por todos. Ele era um respeitado diretor no governo, um homem com experiência e carreira exemplares. No entanto, não nutria grande apreço e respeito por seus subordinados, a menos que estes andassem de salto alto, saias curtas e exalassem um perfume suave de jasmim. Era um mulherengo incorrigível e ninguém que o cercava podia acreditar que ainda não tivesse sofrido um processo por assédio sexual, já que ele analisava decotes melhor do que qualquer relatório.

Saltando da cama como um gato, Adão correu para o banheiro já tirando o pijama ao longo do trajeto. Escovou os dentes durante um rápido banho. Após um mergulho no guarda-roupa, vestiu com pressa e habilidade a usual combinação de camiseta e calça jeans, calçou os tênis sujos de sempre e correu para a cozinha a tempo de engolir um copo de leite e alguns biscoitos, porque ainda pior do que chegar atrasado seria ficar com fome a manhã inteira, sentado em frente a uma tela de computador, ouvindo seu chefe vociferar palavras que pareciam ter sido inventadas para insultá-lo.

A distância para o trabalho, numa repartição do centro da cidade, não era muito grande, porém o trânsito era tão lento e complicado que um percurso que normalmente se faria em 15 minutos, poderia demorar até 1 hora.

Para infelicidade de Adão, aquele parecia ser um dos piores dias para quem estava com pressa. Logo no primeiro semáforo, uma fila interminável de carros se arrastava lentamente cada vez que a luz verde surgia. Nunca passavam mais do que três veículos por vez, ainda que o tempo fosse suficiente para, no mínimo, dez ou doze.

Quando finalmente se desvencilhou do semáforo Adão acelerou seu pequeno Twingo pelas ruas e a esperança de não chegar atrasado sorriu para ele como uma linda garota num sonho de adolescente.

O sonho se tornou pesadelo, quando teve que passar em frente a uma escola no horário de entrada dos alunos. Carros em fila dupla, peruas escolares atravessando o caminho, guardas segurando o trânsito para travessia das crianças. A cada novo obstáculo o humor piorava e a revolta e o inconformismo faziam o ácido em seu estômago borbulhar, consumindo suas entranhas.

Pensamentos desconexos fluíam por sua mente enquanto dirigia. Lembrava-se de um filme que assistira na infância, em que um garoto invade os computadores do Pentágono e acidentalmente provoca uma guerra nuclear. Pensava em todos os asteróides do tamanho de uma cidade, que circulavam pelo espaço e poderiam a qualquer momento dar à raça humana o mesmo destino que tiveram os dinossauros. Em alguns momentos falava sozinho, na loucura do trânsito caótico, perdido em devaneios insanos:

- Deve haver muitos vírus e bactérias ainda desconhecidos, circulando por aí. Uma mordida de um animal qualquer e pronto: é o fim desse inferno chamado civilização – dizia ele enquanto desviava de uma senhora idosa que em vez de estar cuidando dos netos insistia em sair à rua dirigindo um carro mais antigo do que ela própria.

Porém, ao fazer essa manobra, Adão invadiu a contramão por alguns segundos. Tempo suficiente para que um caminhão de combustível surgisse de uma rua lateral, estendendo-se em seu caminho como um muro de concreto. O pequeno Twingo se dilacerou ao chocar-se de frente com o veículo carregado com milhares de litros de líquido inflamável. Uma fagulha logo fez o fogo se alastrar. Adão estava preso às ferragens retorcidas e a última coisa que notou antes de ficar inconsciente foram as sirenes dos bombeiros.

Quando abriu seus olhos novamente, ele estava num quarto branco, deitado em uma cama branca, coberto por lençóis de algodão branco. Quando começava a se perguntar se estaria morto, uma linda mulher entrou pela porta. Ela era alta, esguia, tinha cabelos profundamente negros amarrados num rabo-de-cavalo, seus lábios eram grossos e bem desenhados e seu uniforme tinha um decote generoso que insinuava seios pequenos, mas firmes, como maças maduras.

- Com certeza estou morto e você é o anjo que veio me receber. – disse Adão numa tentativa um tanto patética de galanteio.

A moça sorriu, mostrando dentes perfeitamente alvos e alinhados.

- O senhor sofreu um grave acidente e está no Hospital Municipal. Eu sou a enfermeira encarregada desse turno. – disse ela com uma meiguice capaz de conquistar até o mais frio dos corações. – É hora do seu remédio.

Adão engoliu as pílulas e recebeu injeções sem reclamar. Estava completamente hipnotizado pela beleza e charme daquela mulher. Ninguém nunca tinha mexido tanto com seus sentidos no primeiro contato. Ela era como um sonho, um ideal de todas as qualidades que ele admirava em uma mulher. Parecia que o improvável e lendário “amor à primeira vista” acabara de acontecer naquele quarto de hospital.

Após receber a medicação, não houve tempo para mais conversa, nem flerte, pois um sono irresistível atingiu Adão como um trem desgovernado. Porém, antes de sucumbir aos poderes de Morfeu, ele conseguiu forças para perguntar o nome daquela linda jovem.

- Eva – respondeu ela com um sorriso que transformaria o mais frio dos homens num bobo apaixonado.

A coincidência dos nomes não passou despercebida, mas finalmente a escuridão o engolfou num afago caloroso e ele se rendeu a um sono reparador. Suas dores desvaneceram e o corpo traumatizado, repleto de escoriações, queimaduras e fraturas, repousou tranquilamente.

 - - * - -

Quando Adão acordou, tudo parecia diferente. Havia um silêncio profundo e inquebrável. A porta do quarto estava aberta, mas ninguém passava pelo corredor. Da janela não vinha nenhum barulho de trânsito ou de pessoas. Era como se o tempo tivesse parado.

Ele sentiu uma inquietação, um impulso de se levantar daquele leito de hospital e descobrir o que estava acontecendo. Para sua surpresa, conseguiu sair da cama normalmente. Não estava mais coberto de curativos nem preso a sondas e aparelhos de monitoração. Imaginava quanto tempo teria ficado dormindo.

Com passos lentos e cuidadosos, chegou ao corredor e olhou para ambos os lados. As luzes estavam acesas, o chão estava limpo e reluzente, mas não havia ninguém por perto. Adão entrou nos outros quartos daquele andar. Não encontrou nenhum paciente. A sala dos médicos estava vazia, assim como a administração do hospital. Nem mesmo os seguranças estavam em seus postos.

Ao sair para a rua, ele percebeu, atônito, que estava totalmente sozinho. Ninguém andava pelas calçadas e não havia nenhum carro, ônibus ou motocicleta circulando. Estavam todos parados, sem passageiros, como se tivessem sido abandonados rapidamente. Era como se, subitamente, toda a população da Terra tivesse evaporado.

Após o susto inicial de se ver sozinho no mundo, ele se recobrou daquele estado de perplexidade e começou a pensar no que poderia ter acontecido. Mas nenhuma teoria que pudesse imaginar daria conta de explicar um fenômeno tão absurdo quanto aquele.

Enquanto caminhava pela cidade deserta, se lembrava dos momentos que antecederam o acidente, dos pensamentos e sensações que vivera. Recordou-se da pressa e dos obstáculos no trânsito; e de como seu chefe costumava recebe-lo quando se atrasava. Subitamente, se lembrou de suas idéias sobre o extermínio da humanidade e de como se sentiu bem em imaginar que pudesse um dia estar sozinho no mundo, sem ninguém que pudesse transformar sua vida num inferno.

Quando se dava conta de que isto poderia ser uma maldição mais do que uma benção, que a vida não teria muito sentido de agora em diante, ele ouviu um choro. Era um gemido baixo, mas que se destacava naquele silêncio absoluto.

Dentro de um carro, a poucos metros de distância, estava uma jovem, de cabelos negros e roupa branca. Ela chorava agarrada ao volante. Seus olhos marejados tinham uma expressão de desalento. Adão a reconheceu imediatamente, embora só a tivesse visto uma vez. Era a enfermeira que cuidara dele no hospital, antes que ele adormecesse.

- Hei, moça! – Ele gritou.

Ela olhou sobressaltada em sua direção e um princípio de sorriso surgiu onde antes só havia lágrimas.

Eles caminharam pelas ruas e conversaram por horas. Eva não soube explicar como todas as pessoas haviam desaparecido, mas o fato é que não havia cadáveres, nem vestígio de que algum dia havia existido outros seres humanos no planeta além deles dois.

Os dias se passaram e eles foram se adaptando àquela nova vida. As tentativas de contatos com outros lugares foram inúteis. Decidiram então sair pelo mundo à procura de outros como eles.  Isso não foi difícil. Todos os veículos estavam ainda como tinham sido deixados. Bastava escolher um e dirigir por estradas desertas. Quando a fome chegava bastava entrar num mercadinho de bairro qualquer e escolher o cardápio do dia. Se sentiam frio, encontravam uma loja e pegavam quantas blusas e cobertores quisessem. A vida se tornara fácil. Nada de filas, nada de trânsito. Não havia gente gritando, reclamando nem brigando. Não havia mais chefes nem empregados, nenhuma obrigação ou responsabilidade, apenas um mundo para explorar e uma companhia perfeita.

A convivência trouxe o companheirismo e o amor veio a seguir. Adão e Eva viajaram durante anos, sem nunca conseguir encontrar outra pessoa, mas isso não os deixou tristes nem desesperados. Tudo o que precisavam era um do outro.


EPÍLOGO

No Hospital Municipal, quarto 17, um médico conversa com a enfermeira responsável pelo plantão.

- O que aconteceu com este paciente, senhorita Eva?

- Acidente automobilístico, doutor. Sofreu queimaduras em 90% do corpo. Tem múltiplas fraturas e traumatismos. – informou a moça, que tinha os olhos atentos na direção do médico.

O doutor lançou um olhar de piedade na direção do moribundo. Seu aspecto era terrível. Ele estava inconsciente e era melhor que fosse assim, porque seu corpo estava dilacerado e deformado pelo impacto do acidente e das chamas que se formaram.

Ele folheou o prontuário em suas mãos. Na capa de papel cartão bege havia uma etiqueta onde se podia ler: Adão Silva.  – Aqui diz que ele chegou inconsciente, mas teve uma melhora repentina. O que houve? – perguntou ele.

- Quando entrei no quarto para aplicar a medicação ele abriu os olhos e chegou a falar comigo. Logo em seguida adormeceu e agora está em coma. Todos os procedimentos foram realizados, mas ele não reagiu. Chego a pensar que está desistindo de voltar à vida.

O médico lançou um olhar para seu paciente imóvel na cama de hospital e disse finalmente: - enquanto estiver respirando faremos todo o possível para trazê-lo de volta. Ele saberá que não está sozinho neste mundo.

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