A claridade que invadia o quarto pelas frestas da veneziana
atingiu os olhos de Adão e, naquele momento, ele soube que seu despertador
havia mais uma vez falhado de forma inexplicável. Passava das oito horas e este
seria seu segundo atraso na semana.
Por ser funcionário público, tinha alguma flexibilidade de
horário, o mais difícil era suportar as cobranças de seu chefe, um velho
rabugento que parecia odiá-lo pelo simples fato de existir. O Sr. Emanuel era
um homem alto, corpulento, de pele muito clara e cabelos prateados. Seu rosto
era vermelho e tinha sempre a mesma expressão de desprezo por tudo e por todos.
Ele era um respeitado diretor no governo, um homem com experiência e carreira
exemplares. No entanto, não nutria grande apreço e respeito por seus
subordinados, a menos que estes andassem de salto alto, saias curtas e
exalassem um perfume suave de jasmim. Era um mulherengo incorrigível e ninguém
que o cercava podia acreditar que ainda não tivesse sofrido um processo por
assédio sexual, já que ele analisava decotes melhor do que qualquer relatório.
Saltando da cama como um gato, Adão correu para o banheiro
já tirando o pijama ao longo do trajeto. Escovou os dentes durante um rápido
banho. Após um mergulho no guarda-roupa, vestiu com pressa e habilidade a usual
combinação de camiseta e calça jeans, calçou os tênis sujos de sempre e correu
para a cozinha a tempo de engolir um copo de leite e alguns biscoitos, porque
ainda pior do que chegar atrasado seria ficar com fome a manhã inteira, sentado em
frente a uma tela de computador, ouvindo seu chefe vociferar palavras que
pareciam ter sido inventadas para insultá-lo.
A distância para o trabalho, numa repartição do centro da
cidade, não era muito grande, porém o trânsito era tão lento e complicado que
um percurso que normalmente se faria em 15 minutos, poderia demorar até 1 hora.
Para infelicidade de Adão, aquele parecia ser um dos piores
dias para quem estava com pressa. Logo no primeiro semáforo, uma fila
interminável de carros se arrastava lentamente cada vez que a luz verde surgia.
Nunca passavam mais do que três veículos por vez, ainda que o tempo fosse
suficiente para, no mínimo, dez ou doze.
Quando finalmente se desvencilhou do semáforo Adão acelerou
seu pequeno Twingo pelas ruas e a esperança de não chegar atrasado sorriu para
ele como uma linda garota num sonho de adolescente.
O sonho se tornou pesadelo, quando teve que passar em frente
a uma escola no horário de entrada dos alunos. Carros em fila dupla, peruas
escolares atravessando o caminho, guardas segurando o trânsito para travessia
das crianças. A cada novo obstáculo o humor piorava e a revolta e o inconformismo
faziam o ácido em seu estômago borbulhar, consumindo suas entranhas.
Pensamentos desconexos fluíam por sua mente enquanto dirigia.
Lembrava-se de um filme que assistira na infância, em que um garoto invade os computadores
do Pentágono e acidentalmente provoca uma guerra nuclear. Pensava em todos os
asteróides do tamanho de uma cidade, que circulavam pelo espaço e poderiam a qualquer
momento dar à raça humana o mesmo destino que tiveram os dinossauros. Em alguns
momentos falava sozinho, na loucura do trânsito caótico, perdido em devaneios
insanos:
- Deve haver muitos vírus e bactérias ainda desconhecidos,
circulando por aí. Uma mordida de um animal qualquer e pronto: é o fim desse
inferno chamado civilização – dizia ele enquanto desviava de uma senhora idosa
que em vez de estar cuidando dos netos insistia em sair à rua dirigindo um
carro mais antigo do que ela própria.
Porém, ao fazer essa manobra, Adão invadiu a contramão por
alguns segundos. Tempo suficiente para que um caminhão de combustível surgisse
de uma rua lateral, estendendo-se em seu caminho como um muro de concreto. O
pequeno Twingo se dilacerou ao chocar-se de frente com o veículo carregado com
milhares de litros de líquido inflamável. Uma fagulha logo fez o fogo se
alastrar. Adão estava preso às ferragens retorcidas e a última coisa que notou
antes de ficar inconsciente foram as sirenes dos bombeiros.
Quando abriu seus olhos novamente, ele estava num quarto
branco, deitado em uma cama branca, coberto por lençóis de algodão branco.
Quando começava a se perguntar se estaria morto, uma linda mulher entrou pela
porta. Ela era alta, esguia, tinha cabelos profundamente negros amarrados num
rabo-de-cavalo, seus lábios eram grossos e bem desenhados e seu uniforme tinha
um decote generoso que insinuava seios pequenos, mas firmes, como maças
maduras.
- Com certeza estou morto e você é o anjo que veio me
receber. – disse Adão numa tentativa um tanto patética de galanteio.
A moça sorriu, mostrando dentes perfeitamente alvos e
alinhados.
- O senhor sofreu um grave acidente e está no Hospital
Municipal. Eu sou a enfermeira encarregada desse turno. – disse ela com uma
meiguice capaz de conquistar até o mais frio dos corações. – É hora do seu
remédio.
Adão engoliu as pílulas e recebeu injeções sem reclamar.
Estava completamente hipnotizado pela beleza e charme daquela mulher. Ninguém
nunca tinha mexido tanto com seus sentidos no primeiro contato. Ela era como um
sonho, um ideal de todas as qualidades que ele admirava em uma mulher. Parecia
que o improvável e lendário “amor à primeira vista” acabara de acontecer
naquele quarto de hospital.
Após receber a medicação, não houve tempo para mais
conversa, nem flerte, pois um sono irresistível atingiu Adão como um trem
desgovernado. Porém, antes de sucumbir aos poderes de Morfeu, ele conseguiu
forças para perguntar o nome daquela linda jovem.
- Eva – respondeu ela com um sorriso que transformaria o
mais frio dos homens num bobo apaixonado.
A coincidência dos nomes não passou despercebida, mas finalmente
a escuridão o engolfou num afago caloroso e ele se rendeu a um sono reparador.
Suas dores desvaneceram e o corpo traumatizado, repleto de escoriações,
queimaduras e fraturas, repousou tranquilamente.
- - * - -
Quando Adão acordou, tudo parecia diferente. Havia um
silêncio profundo e inquebrável. A porta do quarto estava aberta, mas ninguém
passava pelo corredor. Da janela não vinha nenhum barulho de trânsito ou de
pessoas. Era como se o tempo tivesse parado.
Ele sentiu uma inquietação, um impulso de se levantar
daquele leito de hospital e descobrir o que estava acontecendo. Para sua
surpresa, conseguiu sair da cama normalmente. Não estava mais coberto de
curativos nem preso a sondas e aparelhos de monitoração. Imaginava quanto tempo
teria ficado dormindo.
Com passos lentos e cuidadosos, chegou ao corredor e olhou
para ambos os lados. As luzes estavam acesas, o chão estava limpo e reluzente,
mas não havia ninguém por perto. Adão entrou nos outros quartos daquele andar.
Não encontrou nenhum paciente. A sala dos médicos estava vazia, assim como a
administração do hospital. Nem mesmo os seguranças estavam em seus postos.
Ao sair para a rua, ele percebeu, atônito, que estava
totalmente sozinho. Ninguém andava pelas calçadas e não havia nenhum carro,
ônibus ou motocicleta circulando. Estavam todos parados, sem passageiros, como
se tivessem sido abandonados rapidamente. Era como se, subitamente, toda a
população da Terra tivesse evaporado.
Após o susto inicial de se ver sozinho no mundo, ele se
recobrou daquele estado de perplexidade e começou a pensar no que poderia ter
acontecido. Mas nenhuma teoria que pudesse imaginar daria conta de explicar um
fenômeno tão absurdo quanto aquele.
Enquanto caminhava pela cidade deserta, se lembrava dos
momentos que antecederam o acidente, dos pensamentos e sensações que vivera. Recordou-se
da pressa e dos obstáculos no trânsito; e de como seu chefe costumava recebe-lo
quando se atrasava. Subitamente, se lembrou de suas idéias sobre o extermínio
da humanidade e de como se sentiu bem em imaginar que pudesse um dia estar
sozinho no mundo, sem ninguém que pudesse transformar sua vida num inferno.
Quando se dava conta de que isto poderia ser uma maldição
mais do que uma benção, que a vida não teria muito sentido de agora em diante,
ele ouviu um choro. Era um gemido baixo, mas que se destacava naquele silêncio
absoluto.
Dentro de um carro, a poucos metros de distância, estava uma
jovem, de cabelos negros e roupa branca. Ela chorava agarrada ao volante. Seus
olhos marejados tinham uma expressão de desalento. Adão a reconheceu
imediatamente, embora só a tivesse visto uma vez. Era a enfermeira que cuidara
dele no hospital, antes que ele adormecesse.
- Hei, moça! – Ele gritou.
Ela olhou sobressaltada em sua direção e um princípio de sorriso
surgiu onde antes só havia lágrimas.
Eles caminharam pelas ruas e conversaram por horas. Eva não
soube explicar como todas as pessoas haviam desaparecido, mas o fato é que não
havia cadáveres, nem vestígio de que algum dia havia existido outros seres
humanos no planeta além deles dois.
Os dias se passaram e eles foram se adaptando àquela nova
vida. As tentativas de contatos com outros lugares foram inúteis. Decidiram
então sair pelo mundo à procura de outros como eles. Isso não foi difícil. Todos os veículos
estavam ainda como tinham sido deixados. Bastava escolher um e dirigir por
estradas desertas. Quando a fome chegava bastava entrar num mercadinho de
bairro qualquer e escolher o cardápio do dia. Se sentiam frio, encontravam uma
loja e pegavam quantas blusas e cobertores quisessem. A vida se tornara fácil.
Nada de filas, nada de trânsito. Não havia gente gritando, reclamando nem
brigando. Não havia mais chefes nem empregados, nenhuma obrigação ou
responsabilidade, apenas um mundo para explorar e uma companhia perfeita.
A convivência trouxe o companheirismo e o amor veio a
seguir. Adão e Eva viajaram durante anos, sem nunca conseguir encontrar outra
pessoa, mas isso não os deixou tristes nem desesperados. Tudo o que precisavam
era um do outro.
EPÍLOGO
No Hospital Municipal, quarto 17, um médico conversa com a
enfermeira responsável pelo plantão.
- O que aconteceu com este paciente, senhorita Eva?
- Acidente automobilístico, doutor. Sofreu queimaduras em
90% do corpo. Tem múltiplas fraturas e traumatismos. – informou a moça, que
tinha os olhos atentos na direção do médico.
O doutor lançou um olhar de piedade na direção do moribundo.
Seu aspecto era terrível. Ele estava inconsciente e era melhor que fosse assim,
porque seu corpo estava dilacerado e deformado pelo impacto do acidente e das
chamas que se formaram.
Ele folheou o prontuário em suas mãos. Na capa de papel
cartão bege havia uma etiqueta onde se podia ler: Adão Silva. – Aqui diz que ele chegou inconsciente, mas teve
uma melhora repentina. O que houve? – perguntou ele.
- Quando entrei no quarto para aplicar a medicação ele abriu
os olhos e chegou a falar comigo. Logo em seguida adormeceu e agora está em coma. Todos os
procedimentos foram realizados, mas ele não reagiu. Chego a pensar que está
desistindo de voltar à vida.
O médico lançou um olhar para seu paciente imóvel na cama de
hospital e disse finalmente: - enquanto estiver respirando faremos todo o
possível para trazê-lo de volta. Ele saberá que não está sozinho neste mundo.
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